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Considerações sobre um artista por vir.

Considerações sobre um artista por vir¹.

 

Por Danilo Dias de Freitas

 

O saxofonista Teotônio renunciou ao dom da fala, anunciando: Só sou o que soo².

Luiz Carlos Ribeiro Borges

 

Entre o final da década de 1950 e meados da década de 1970, no Brasil e no mundo, as vanguardas intelectuais revisitaram as longínquas e sempre atuais aporias entre arte e política. 

No cinema brasileiro há muitos momentos que poderiam marcar simbolicamente o início deste período. Talvez O grande momento (Roberto Santos, 1958), que Alex Viany classificou como o “melhor primeiro filme de um autor”³. Ou Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos), que o mesmo Alex Viany classificou como um “filme deflagrador”4. Ou, então, a Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), momento em que o jovem Glauber Rocha – tomando partido sobre um campo de batalha típico dos períodos de forte tensão política – separa o joio do trigo: o cinema revolucionário, de autor, contra o cinema industrial da Vera Cruz. 

De todo modo, não é o acontecimento inaugural deste período o mais importante. Antes, são os problemas que essa geração de cineastas se colocou a si mesma. Problemas que podem ser sinteticamente expressos nas palavras de Nelson Pereira dos Santos: “no fundo, resumindo, o que a gente propunha era um cinema livre das limitações do estúdio, um cinema das ruas que tivesse um contato direto com o povo e seus problemas”5.

O artista (Luiz Carlos R. Borges, 1967) faz parte desse contexto histórico geral. Mas também se integra a um processo mais localizado no espaço e no tempo, tema já explorado por Natasha Hernandez – de forma detida – em O cineclube Universitário de Campinas (1965 – 1973)6.

Não me concentrarei, portanto, em muitos dos pontos em que O artista  se abre à uma apreciação crítica mais prolongada e rigorosa, pois Natasha Hernandez já fez isso de modo satisfatório em sua dissertação de mestrado. 

Me concentro nas seguintes questões: que relações entre arte e política estabelece O artista? Como fazer uma releitura atualizada deste filme?  

Borges faz de sua personagem principal um artista em geral. Não um cineasta, um pintor, um poeta, um músico, mas todos esses e nenhum desses ao mesmo tempo. Borges designa, no título do filme, “o” artista – com artigo definido. Não “um” artista, com artigo indefinido, como parece ser a personagem do filme. São estas antinomias, esses curtos-circuitos quase imperceptíveis que dão ao filme sua potência política mais interessante. 

À certa altura do filme a flor aparece como símbolo de uma arte ornamental, alienada e a serviço da ordem. Mas essa constatação torna-se possível somente após uma viravolta na consciência do artista diante da “realidade desflorida”, quando, a mesma flor, antecipada por mãos que se unem em sinal de coletividade, aparece despedaçada no chão

A flor do início é a mesma do fim, mas agora modificada por toda a transformação individual do artista. O importante é que neste processo não há uma antecipação plena dos sentidos. A montagem suspende a síntese, operando em duplo sentido: como aquilo que liga (Vertov) e também faz opor (Eisenstein). 

Em alguns momentos, ao contrário, a montagem parece antecipar em demasia seu sentido ou até mesmo forçar uma síntese ao espectador. Os aplausos inseridos pela música de Baden Powell no momento em que o artista sobe o morro dão, é verdade, um caráter patético (Eisenstein) à mudança na prática do artista. Mas considerado o conjunto no qual se insere, parece haver uma síntese quase normativa, a saber, a prática artística deve se dar a partir de uma escolha que privilegie a relação direta com o povo, e não a partir da criação de formas estéticas.  

É preciso considerar, mais uma vez, o caráter alegórico que Borges confere às imagens e aos sons por intermédio da montagem. O sentido nunca é literal. Borges toma partido, me parece, daquilo que já tivemos oportunidade de enunciar pelas palavras de Nelson Pereira dos Santos: um cinema (uma arte) que tivesse contato direto com o povo e seus problemas.

No entanto, a resolução dialética, ou melhor, o fechamento da transformação da prática do artista se dá com clímax nos aplausos da música de Baden Powell. Para além da tensão entre o erudito (Strauss) e o popular (Powell), a positivação via aplausos, me parece, quase identifica uma política da arte – sem possíveis desvios – com uma arte política determinada. 

É curioso que poucos momentos antes dessa sequência o artista chegue a subir em um caixote – numa espécie de púlpito improvisado – para discursar ao povo. O senso comum, alienado, não lhe dá ouvidos. Então o artista vai para o confronto direto. Tenta aos pulos deslocar a atenção pública. Não obtendo resultado, mete a mão no jornal do leitor imóvel. Aqui parece haver a influência de duas tradições do teatro engajado. O teatro didático de Brecht e o teatro da crueldade de Artaud (ou seria a estética da violência de Glauber Rocha?). 

Para o primeiro, o teatro seria uma assembleia pública em que as pessoas têm oportunidade de debater e tomar consciência de seus problemas coletivos, sobretudo de uma perspectiva de classe. Para o segundo, o teatro seria um ritual purificador em que a coletividade recupera suas energias vitais vampirizadas por uma sociedade castradora e alienante. O teatro da crueldade é o choque, o arrasto corporal do espectador de sua imobilidade observadora. 

Apesar das muitas diferenças entre Brecht e Artaud, há um fio político que os une. O espectador deve ser deslocado, esclarecido, senão arrastado de sua passividade. Seja pelo distanciamento didático, seja pela crueldade purificadora.

Há uma premissa, em ambos, de que ser espectador é necessariamente ruim. Ser espectador é ser passivo, em última instância. É estar capturado por um poder econômico e social que encobre a essência do real e impede a intervenção na realidade. Caberia à arte rasgar o véu das aparências e restituir à coletividade, composta de espectadores dóceis, suas forças vitais.

O interessante é que depois de sua viravolta, o artista de Borges tenha como alvo – tanto de seu didatismo quanto de sua crueldade – as personagens circunscritas ao universo fílmico. O alvo do artista não é o espectador, pelo menos não diretamente. Eis aqui um curioso uso, talvez seja mais correto dizer deslocamento, das tradições teatrais de Brecht e Artaud. Borges, embora possa ter se referenciado em Brecht ou Artaud, não dá de barato que o espectador seja necessariamente passivo.

É verdade que o cinema pressupõe, ao contrário do teatro, uma separação intransponível entre a cena filmada e o público na sala escura. Mas essa separação não impediu, ao longo da história do cinema, que muitos cineastas visassem o espectador de modo mais direto, por exemplo, fazendo o uso das “estruturas de agressão”7

Ao contrário, Borges parece recorrer à premissa de que o espectador se basta a si mesmo ou, em outras palavras, que possui o repertório suficiente para fazer suas próprias viagens e leituras ao longo do filme. 

A ideia de que Brecht e Artaud possam ter sido referências para Borges é somente minha. Não li em lugar algum e nem de outro modo fiquei sabendo que Borges tenha deliberadamente usado essas referências. 

É o conjunto de referências históricas que se pode encontrar nos livros, nos filmes, no entrecruzamento de imagens e discursos que me permite, como espectador, fazer essa projeção de possíveis influências no filme de Borges. Ora, minha posição de espectador permite, como podemos observar até aqui, projetar meu repertório, comparar, especular. Não há passividade. E mesmo o espectador com repertório distinto do meu faria suas projeções, conexões, cruzamentos, etc. Que a relação entre os filmes e os espectadores se dê em diferentes níveis de complexidade, em nada altera o fato de que a condição de espectador seja antes uma relação dinâmica que uma generalidade abstrata. Em outras palavras, a condição de espectador não é um universal de razão, mas uma relação imanente entre o observador e o mundo.

Dito isso, vejamos mais de perto a sequência em que a abertura ao espectador como potência ativa aparece de modo mais interessante: a subida do artista ao morro. 

Abstraído o fechamento que os aplausos da trilha sonora dão a esse movimento, a subida ao morro é resultado de uma mudança na prática do artista. Mas quais caminhos irão tomar essa mudança após a subida do artista ao morro? Que tipo de arte passará a fazer o artista que já não é mais de Borges e nem de ninguém? Deixará de fazer arte e se tornará um militante revolucionário? Abandonará a prática artística de uma vez por todas? Continuará fazendo arte, mas agora em aliança com formas de agitação e propaganda? 

Aqui voltamos ao centro de minhas preocupações. Que política da arte e do cinema temos aqui? Como fazer uma releitura cinematográfica d’O Artista que explore o que há de mais interessante nessa política da arte e do cinema?  

A abertura, a espessura de tempo que o artista abre ao se deslocar por entre as fissuras do campo social é o que o filme nos oferece de mais instigante. Porque as aporias entre a arte e a política, desde Platão, dizem respeito à distribuição polêmica e sensível das ocupações sociais. Na sociedade platônica cada um deve ocupar o seu lugar. Por isso a necessidade de excluir o poeta (o artista) do interior da república platônica. A periculosidade política do artista, nas entrelinhas da lógica platônica, não se deve ao fato de que seja um fabricador de cópias degradadas do real. Se deve antes ao fato de que seja um ser duplo, um agente social que caminha nos limites da divisão polêmica das competências. A prática artística desloca o trabalhador do espaço privado do trabalho e o lança na esfera pública, ou seja, o artista é aquele que faz do exercício privado do trabalho uma cena pública. A prática artística não é a exceção ao trabalho, mas o deslocamento de sua visibilidade8.

A política da arte nasce, então, na medida em que provoca uma clivagem na economia sensível das competências sociais: quem deve encerrar-se no mundo privado do trabalho, sem tempo para deliberar sobre o bem comum, e quem deve possuir tempo suficiente para se dedicar à deliberação na polis?

O Artista de Borges perde, me parece, quando a subida ao morro é antecipadamente positivada por aplausos. Mas ganha quando não se pode saber o que há do lado de lá do morro. Que haja pobreza material, nós podemos imaginar. Mas não podemos saber o que o artista fará de seu encontro com o lado de lá. São esses pares ou multiplicidades de vetores que não se fecham, embora tendam à síntese, que dão ao filme uma política da arte interessante.   

É esta carga de possível, de suspensão da síntese, de manutenção da tensão dialética que me interessa. É o rasgo sensível que o artista provoca no meio do tecido social que pode abrir, me parece, o caminho para uma política da arte consistente. Pois a justeza do cinema (e da arte) está no seu poder de embaçar a fronteira entre os que olham e os que agem, os que trabalham e os que pensam, os que governam e os que são governados. E mais, sua consistência política provém sobretudo de suas invenções estéticas, não necessariamente de uma proximidade social. Pois algumas distâncias podem ser politicamente mais radicais que algumas proximidades. 

Por isso gostaríamos de fazer um retorno  a’O Artista e, a partir da distância que nos separa, re-apresentar as possibilidades daquilo que foi. Pois o retorno restitui ao passado aquilo que poderia ter sido, tornando-o possível novamente. É o sentido transformador desta experiência de abertura e restituição do passado que Walter Benjamin via na memória. A memória como possibilidade de transformar o real em possível e o possível em real. 

A meta-arte d’O Artista, depois de certa distância temporal, nos permite rememorar o paradoxo do artista que se vê obrigado a dar respostas às urgências de seu tempo e ao mesmo tempo produzir objetos estéticos. É esse tipo de paradoxo que nos instiga a seguir em frente, com O Artista, abertos ao porvir.  

Notas:

  1. Este texto foi escrito originalmente – por volta de 21/06/2021 – por razões práticas: abrir um diálogo com Luiz Carlos Borges sobre a possibilidade de uma refilmagem (releitura) de O artista (1967), filme de sua autoria.
  2. BORGES. Luiz Carlos Ribeiro. Assembléia de Micröbios & Eurico o Mordomo. Campinas. Texto e Textura. 2016. p. 53.
  3. GALVÃO. Maria Rita. Burguesia e Cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1981. p. 202.
  4. Ibid. 202.
  5. Ibid. 205.
  6. ALMEIDA. Natasha Hernandez. Dissertação de Mestrado. São Carlos. 2013. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/5608/5137.pdf?sequence=1&isAllowed=y 
  7. BURCH. Noel. Práxis do Cinema. São Paulo. Editora Perspectiva. 2011.
  8. Ver RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e Política. Editora 34. São Paulo. 2018.
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