loading

Um Artista – Proposta de Direção

Um Artista – Proposta de Direção

 

Por  Danilo Dias de Freitas e Murilo Dias de Freitas

 

a) Da estética do filme em geral:

Se tivéssemos que definir em uma só palavra o que buscamos esteticamente neste filme, esta palavra seria singeleza. Mas o que isso significa exatamente? Significa projetar na tela de cinema uma costura mágica dos acontecimentos ordinários, uma espécie de reverência poética ao real; em suma, projetar na tela de cinema um sentimento de duração plena do real. 

O crítico e teórico do cinema, André Bazin, ao fazer a defesa do neo realismo italiano, definiu essa postura do seguinte modo: “respeitar o real não é, com efeito, acumular as aparências, é, ao contrário, despojá-lo de tudo o que não é essencial, e chegar à totalidade dentro da simplicidade” (Bazin, 2014, p. 371). 

O cinema hegemônico, esse que só acumula aparências, condicionou nossa percepção às etiquetas coladas sobre o real, não a sentir o real. Essa tendência, que tem origem no superestímulo do esquema sensório-motor produzido pelo atual sistema econômico, acentuou-se ainda mais sob a influência do cinema de ação contemporâneo. Esse cinema é o reino das funções estímulo-resposta, dos movimentos rápidos e barulhentos. Como alternativa a esse cinema, queremos um filme que permita ao espectador contemplar a duração do plano cinematográfico; um filme que esgote tudo o que se possa expressar pela imobilidade, a delicadeza e o silêncio. Um filme que, ao contrário das etiquetas, nos dê algo mais próximo da duração plena do real (ainda que o cinema não seja o reflexo da realidade, mas a realidade de um reflexo). 

Em outras palavras, o realismo que buscamos não se baseia na reconstrução de eventos. Se baseia na restituição de uma experiência por meio de sua própria percepção poética. Para a restituição dessas experiências é preciso que as imagens e os sons do nosso filme não queiram mostrar e dizer tudo ao mesmo tempo, pois o real não é somente aquilo que nos é dado a perceber, e, no mais, o que se expressa pela imagem não carece ser necessariamente expresso pelo som (e vice-versa). É preciso suspender a função estímulo-resposta, pois a suspensão do esquema sensório-motor é a chave para o mergulho no tempo e a consequente expansão sensorial; é preciso que o fora de quadro tenha tanto ou mais valor que a ação ocorrida dentro do quadro, pois aquilo que não se mostra é aquilo que o espectador completa com a imaginação. Em resumo, é preciso fazer ver e ouvir por intermédio da conexão imagem-som aquilo que não se vê com os olhos e ouvidos.  

 

b) Da direção de atores: 

O cineasta Robert Bresson, em um de seus diversos aforismas reunidos em ‘Notas sobre o Cinematógrafo’, dizia: “o real não é dramático. O drama nascerá de uma certa marcha de elementos não-dramáticos”. Se tomamos essa nota de empréstimo neste tópico é porque acreditamos que os sentimentos provocados por um filme dependem mais da exata contenção e sutileza das expressões corporais do que de diálogos fundados em psicologismos dramáticos. Portanto, para nosso filme, as personagens que não fazem parte da dupla de artistas devem aparecer não como centro difusor da ação (psicologismo dramático), mas como alvos corporais dos acontecimentos. Não queremos abstrair da ação fílmica a subjetividade das personagens, mas que tal subjetividade brote silenciosamente de seus movimentos mais sutis. Em outras palavras, será a junção dos planos cinematográficos que darão o possível tom dramático a esta ou aquela situação, não o expressionismo dos atores. Os atores (não-atores) devem ter, portanto, uma postura despojada de expressionismo físico exagerado. Em suma, uma postura despojada de psicologismos pré-fabricados.

Já os personagens da dupla de artistas, por sua natureza teatral e transitiva, devem dar ao filme um tom de quebra da banalidade do cotidiano. Mas, outra vez, isso deve acontecer de modo sutil. Neste caso, por se tratar de gestos, mímicas e expressões corporais é natural que haja um maior expressionismo corporal. O que não queremos é o exacerbamento do drama pelo expressionismo físico. Relembrando: queremos esgotar tudo o que se possa expressar pela imobilidade, o silêncio e a sutileza dos gestos; como se o “número” performático fosse uma estratégia de abertura à paisagem humana e territorial que atravessa, isto é, que fosse também uma forma de reverência às pessoas que irão doar suas histórias em formas de fotografias, cartas, etc.

c) Da composição dos planos cinematográficos:

Queremos que os planos contenham em si a interação de forças gráficas, luminosas e afetivas necessárias à produção do sentimento de duração plena do real. Como dissemos anteriormente, não queremos imagens que acumulem aparências, mas que despojem o real de tudo que seja acessório à expressão das relações poéticas que relacionam as personagens entre si e seu território. Por isso daremos preferência ao uso de planos que potencializem o extra-campo e se coloquem à certa distância dos acontecimentos, como que permitindo a sensação de independência do real.

d) Do som: 

Uma cidade nunca é a soma de suas ruas e bairros. Uma cidade é a composição contraditória de espaços e tempos impregnados de diferenças históricas, econômicas, sociais, etc. Será preciso captar, portanto, mais que o tom médio de um bairro qualquer de uma cidade qualquer; será preciso captar as sutilezas e a poesia sonora de um território específico. 

e) Da fotografia: 

Deve ser concebida de modo que, na composição dos planos, se depure o “acúmulo de aparências”. Isso significa priorizar as singularidades das locações reais em que iremos filmar. Queremos uma fotografia capaz de fazer sentir a beleza das coisas menores. Os objetos de uma casa, a disposição de seus espaços, a iluminação de seus cômodos, tudo deve ser apreendido em sua singularidade. A arquitetura e a decoração de interiores burguesa tendem à impessoalidade. O que nós queremos é, ao contrário, captar aquilo que foge à regra da impessoalidade. Em outras palavras, será preciso construir planos que consigam exprimir o que há de mais humano e pessoal nos objetos de uma casa, de uma rua, de uma avenida. E que do ponto de vista técnico procure usar, na medida do possível, o aparato estritamente necessário para tal fim. Pois, quem pode com menos pode com mais. Quem só pode com mais, não pode com menos. É preciso tornar algo visível não através de mais luz, mas por um novo ângulo segundo o qual o mostramos.

f) Da iluminação: 

Como dissemos anteriormente, queremos captar tudo aquilo que foge à regra da impessoalidade. Queremos expressar aquilo que há de mais singular nos objetos, nas pessoas e na composição dos espaços do território em que iremos filmar. A luz deve ser, portanto, uma aliada da fotografia na composição das ambiências e situações que exprimem a poesia de tal singularidade, não uma forma de tornar as coisas mostráveis. A luz deve ser um componente criativo das cenas, não uma bengala técnica. O escuro tem muito a dizer, precisamos aprender a escutá-lo.

g) Da direção de arte:

A direção de arte deve ser a principal aliada da fotografia, da iluminação e da direção no propósito de alcançar nosso principal objetivo: não acumular aparências; despojar o real de tudo o que não é essencial, “e chegar à totalidade dentro da simplicidade”. Em outras palavras, precisamos farejar tudo aquilo que singulariza o território em termos da comunidade que o habita. Quais objetos fazem de uma casa um lar? O que a disposição dos espaços de uma casa pode nos dizer? Quantos cômodos ela tem?  Qual sua luz natural? O que conecta uma personagem a determinado espaço? Em suma, aqui vale tudo aquilo que foi dito para a fotografia e a iluminação sobre a impessoalidade da arquitetura e decoração de interiores burguesa. Queremos expressar aquilo que há de mais humano e pessoal nos objetos e espaços do território em que iremos filmar.

 

NOTAS:

BAZIN, André. O que é o cinema? COSACNAIFY. São Paulo. 2014

BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo. 

 

FILMOGRAFIA BÁSICA:

A estrada da vida (1954). Direção: Federico Fellini. Duração: 107 minutos

Um condenado à morte escapou (1956). Direção: Robert Bresson. Duração: 99 min

O homem sanduíche (1983). Direção: Hou Hsiao-Hsien. Duração: 35 min.

 

FILMOGRAFIA COMPLEMENTAR:

Era uma vez um pai (1942). Direção: Yasujiro Ozu. Duração: 86 minutos.

Poeira ao vento (1986). Direção: Hou Hsiao-Hsien. Duração: 110 minutos.

Ossos (1997). Direção: Pedro Costa. Duração: 94 minutos.

Juventude em marcha (2006). Direção: Pedro Costa. Duração: 115 minutos.

Vitalina Varela (2019). Direção: Pedro Costa. Duração: 124 minutos.

 

Hit enter to search or ESC to close